Àquela
hora da noite o estacionamento estava sempre deserto. Engraçado
como às onze e meia da noite, um estacionamento enorme, no
centro da cidade, parece mais deserto com dez ou doze carros
espalhados do que se estivesse inteiramente vazio. Poucas
lâmpadas acesas. Barulhos, só lá fora: a angústia dos ônibus
passando, um ou outro carro se afastando.
Onze e
meia, o espetáculo terminado, o público já indo para casa.
Estacionamento do Teatro do BNH, no Centro Novo da Cidade Nova.
E nesta noite, a caminho do carro, percebemos uma coisa se
movendo do outro lado, o lado oposto mesmo, uma zona de pouca
luz. Aqui vou parafrasear Mark Twain: "Não pergunto de que
espécie é o bicho; basta que seja um animal; ninguém pode ser
nada melhor." (Claro que Mark Twain escreveu isso falando
dos homens. E concluiu que ninguém pode ser nada pior). Mas o
fato é que vimos a coisa se movendo. Imediatamente,
atavicamente, nos agachamos e começamos a fazer todos aqueles
gestos e ruídos ridículos que todos os que estão lendo esse
livro conhecem tão bem. Gestos e ruídos para que o animal se
aproxime e nos dê o prazer indizível do contato, da permissão
do carinho. Estou certo de que quem faz carinho num bicho está
se gratificando muito mais do que ao bicho. E aí, o primeiro
milagre: a coisa ouviu os ruídos, nos viu, e veio para nós.
Correndo. Era uma gata. Preta e branca, o focinho cor-de-rosa,
jovem, pequena. E grávida. Com a carência de uma gatinha cujo
lar é um estacionamento no Centro da cidade. Agora é o momento
de vocês imaginarem todos os carinhos possíveis. O trançar
felino entre nossas pernas. O ronronar alto e morno. A barriga
para coçar. A paixão violenta e recíproca nascida ali, naquela
hora suja, naquele estacionamento deserto. A gatinha apaixonada
por nós, eu e Maria Lúcia, apaixonados, apaixonados pela
gatinha. A vontade incontrolável de levá-la para casa. Foi
quando tivemos que respirar fundo e virar adultos de novo: a
casa. Na época morávamos numa casa em Laranjeiras, onde até
pouco tempo reinava, absoluta, Ava Gardner, nossa pastora
belga. Só que alguns meses antes tínhamos visto seis pares de
orelhinhas silhuetadas nos vendo chegar. Uma ninhada de gatos,
das mais diversas cores, das mais estranhas combinações de
pelos. De longe, olhando para nós. O que aconteceu a seguir,
vocês que já trilharam os passos dessa estrada podem adivinhar:
os restos de comida que trazíamos do restaurante, do jantar de
depois do espetáculo, e que eram para Ava Gardner, começaram a
ser divididos com os gatinhos. Das primeiras vezes, eles
esperavam que nos afastássemos, para tomar coragem e comer. Na
terceira noite, os seis já estavam nos esperando. E aí,
inevitavelmente, começamos a cometer todas as loucuras que
cometêramos a vida toda e que tínhamos jurado nunca mais
cometer: a comida mais perto de casa, na noite seguinte ainda
mais perto, na outra noite na porta da garagem, na noite
seguinte dentro da garagem. Pronto! O drama criado. Seis
gatinhos morando em nossa garagem, Ava Gardner magoada e
furibunda- com carradas de razão- alijada de parte de seus
domínios, os sustos, os medos, as comportas. A chave que tem
que ser passada e checada. A porta que não pode ficar aberta.
Os cuidados ao entrar, passar e sair. O doce inferno do amor,
que é mais forte do que nós, e que vira nossas vidas de cabeça
para baixo.
Então,
estávamos assim: apaixonados pela gatinha do estacionamento,
Ava Gardner só com a casa toda - inclusive nossa cama - para
ela; mas sem a garagem, e os seis irmãos se esbaldando. Saíam,
iam à luta, e voltavam. Quando queriam.
Bobeamos.
Demos mole. Achamos que o primeiro cio ainda levaria um tempo.
A esterilização marcada para o fim do mês. Aí, é claro, deu-se
a melódia: duas, Rajadinha e Máuca, apareceram grávidas. Ao
mesmo tempo. Aqui faz-se necessária uma explicação: Rajadinha
se chamava Rajadinha porque era rajadinha. Para os íntimos,
depois, ficou sendo Raja. E Máuca se chamava Máuca porque
tínhamos pruridos de educação e civilidade e não queríamos que
os amigos soubessem que seu nome de batismo era Mau Caráter, e,
outra vez, com carradas de razão: batia nos outros, criava
casos, era sempre a primeira a comer e a receber carinho. Ai da
cabeça que tentasse chegar antes para o afago de nossos dedos,
entrava tudo na pancada: a cabeça, o resto do gato, às vezes,
nosso dedos.
De modo
que chegamos à conclusão de que não podíamos, não tínhamos
condição de levar a gatinha do estacionamento para casa. Ainda
mais quando, após outra noite de amor e despedidas com ela,
entramos em casa e vimos Máuca em trabalho de parto. Ficamos
assistindo, ajudando, e nos maravilhando. Só que Máuca não
precisava de ajuda. Ela era mãe, sempre tinha sido mãe, nascera
para ser mãe. Eficientíssima, carinhosa, sabia de tudo, parecia
que aquela era sua décima ninhada. Tanto que três noites
depois, Raja deitou, se ajeitou da maneira que lhe pareceu mais
confortável, e começou a parir. Deitada de costas, a barriga
para cima, ao lado da Máuca. E vamos ser francos: Raja não
tinha o menor instinto, a menor bossa para a maternidade.
Parecia que nem era com ela. Ficou deitada, de vez em quando
erguendo a cabeça e lançando um olhar que demonstrava algum
interesse nos procedimentos, e pondo os filhotes no mundo,
recebendo placidamente nossos carinhos e exortações, enquanto
Máuca fazia todo o trabalho: puxava os filhotes mais
recalcitrantes, cuidava da placenta, cortava o cordão com os
dentes, lambia os sobrinhos - tudo isso enquanto dava de mamar
aos filhos - e lançava olhares severos de reprovação e
auto-suficiência quando Maria Lúcia, aflita, ousava tentar
ajudar. Foi então que os filhos recém-nascidos da desnaturada
Raja foram mamar. Na Máuca. Máuca virou penca de filhos. De tal
forma que os dela, já três dias mais velhos e mais vividos que
os primos acabados de sair da barriga, cederam seus lugares e
foram mamar na tia. (São essas coisas que a gente conta e
ninguém acredita. E, outra vez, com carradas de razão; mas tudo
isso aconteceu do jeito que estou contando).
De modo
que estávamos assim: Ava Gardner, injuriada, siderada na porta
da garagem e imaginando vinganças tão terríveis que quando
simplesmente olhávamos para ela, baixava as orelhas, punha o
rabo entre as pernas e se afastava, esmagada pela culpa; quatro
gatos entrando e saindo, no auge da saúde, da juventude e da
esbórnia; e duas jovens mamães se revezando na criação e nas
mamadas. Lá, naquela garagem, ninguém sabia quem era quem. Os
estudioso de imprinting passariam uma semana lá e
abandonariam para sempre seus conceitos e suas
teorias.
E havia
sempre a gatinha do estacionamento. Que nos esperava todas as
noites deitada ao lado do nosso carro. E a impossibilidade de
levá-la cada vez mais evidente, e a vontade de levá-la cada vez
mais incontrolável. Até que uma noite, após as despedidas, ela
entrou no nosso carro. Juntamos todas as forças, respiramos
fundo, ficamos muito adultos e pragmáticos e, num esforço
supremo, pegamos a gatinha - ela não tinha nome - no colo,
demos muitos beijos, pusemos no chão do estacionamento, e
dissemos até amanhã. Adultos. Pragmáticos. Destroçados. Não
conseguíamos nos olhar nos olhos. Culpa, vergonha, coração
partido. De tal maneira que, no dia seguinte, resolvemos: a
gente dá um jeito, leva ela para o nosso banheiro, para o nosso
quarto, arranja um lugar para prender a Ava; reza para ela se
acostumar com os outros gatos, faz qualquer coisa, mas traz a
gatinha para casa hoje. Hoje, depois do espetáculo, damos mais
esse mergulho, fazemos mais essa loucura, mas trazemos a
bichinha para casa.
O
espetáculo naquela noite pareceu mais longo do que os outros.
Nunca foi tão difícil e ansioso discar M Para Matar . No
camarim, as roupas trocadas com pressa ofegante, uma sensação
de euforia. A corrida para o carro. E ela não estava. Não
estava. Não estava no carro, não estava no estacionamento, não
estava no mundo. Nunca mais soubemos dela. Perguntamos,
procuramos. Nunca mais.
E já que
comecei citando Mark Twain, termino citando um trecho do
"Soneto da Quarta-feira de Cinzas", do Vinicíus. O
final: