Cláudio Cavalcanti
 
Início
Leis de Defesa dos Animais
Outras Leis
Divulgação
SUIPA - CCZ - IJV
Implementação das
Leis Aprovadas
Recursos destinados
Vivissecção -
Experimentação Animal
A Vida com os Bichos
Vegetarianismo
Fale com Cláudio

     

     

"Crescer amando os animais é aprender a compaixão e o respeito por todas as formas de vida"

 

Quarta-Feira de Cinzas

 Cláudio Cavalcanti

(Crônica publicadas no livro "Amando os gatos com todas as letras", Editora Top. Co. Multimeios, 2003)

  

Àquela hora da noite o estacionamento estava sempre deserto. Engraçado como às onze e meia da noite, um estacionamento enorme, no centro da cidade, parece mais deserto com dez ou doze carros espalhados do que se estivesse inteiramente vazio. Poucas lâmpadas acesas. Barulhos, só lá fora: a angústia dos ônibus passando, um ou outro carro se afastando.

Onze e meia, o espetáculo terminado, o público já indo para casa. Estacionamento do Teatro do BNH, no Centro Novo da Cidade Nova. E nesta noite, a caminho do carro, percebemos uma coisa se movendo do outro lado, o lado oposto mesmo, uma zona de pouca luz. Aqui vou parafrasear Mark Twain: "Não pergunto de que espécie é o bicho; basta que seja um animal; ninguém pode ser nada melhor." (Claro que Mark Twain escreveu isso falando dos homens. E concluiu que ninguém pode ser nada pior). Mas o fato é que vimos a coisa se movendo. Imediatamente, atavicamente, nos agachamos e começamos a fazer todos aqueles gestos e ruídos ridículos que todos os que estão lendo esse livro conhecem tão bem. Gestos e ruídos para que o animal se aproxime e nos dê o prazer indizível do contato, da permissão do carinho. Estou certo de que quem faz carinho num bicho está se gratificando muito mais do que ao bicho. E aí, o primeiro milagre: a coisa ouviu os ruídos, nos viu, e veio para nós. Correndo. Era uma gata. Preta e branca, o focinho cor-de-rosa, jovem, pequena. E grávida. Com a carência de uma gatinha cujo lar é um estacionamento no Centro da cidade. Agora é o momento de vocês imaginarem todos os carinhos possíveis. O trançar felino entre nossas pernas. O ronronar alto e morno. A barriga para coçar. A paixão violenta e recíproca nascida ali, naquela hora suja, naquele estacionamento deserto. A gatinha apaixonada por nós, eu e Maria Lúcia, apaixonados, apaixonados pela gatinha. A vontade incontrolável de levá-la para casa. Foi quando tivemos que respirar fundo e virar adultos de novo: a casa. Na época morávamos numa casa em Laranjeiras, onde até pouco tempo reinava, absoluta, Ava Gardner, nossa pastora belga. Só que alguns meses antes tínhamos visto seis pares de orelhinhas silhuetadas nos vendo chegar. Uma ninhada de gatos, das mais diversas cores, das mais estranhas combinações de pelos. De longe, olhando para nós. O que aconteceu a seguir, vocês que já trilharam os passos dessa estrada podem adivinhar: os restos de comida que trazíamos do restaurante, do jantar de depois do espetáculo, e que eram para Ava Gardner, começaram a ser divididos com os gatinhos. Das primeiras vezes, eles esperavam que nos afastássemos, para tomar coragem e comer. Na terceira noite, os seis já estavam nos esperando. E aí, inevitavelmente, começamos a cometer todas as loucuras que cometêramos a vida toda e que tínhamos jurado nunca mais cometer: a comida mais perto de casa, na noite seguinte ainda mais perto, na outra noite na porta da garagem, na noite seguinte dentro da garagem. Pronto! O drama criado. Seis gatinhos morando em nossa garagem, Ava Gardner magoada e furibunda- com carradas de razão- alijada de parte de seus domínios, os sustos, os medos, as comportas. A chave que tem que ser passada e checada. A porta que não pode ficar aberta. Os cuidados ao entrar, passar e sair. O doce inferno do amor, que é mais forte do que nós, e que vira nossas vidas de cabeça para baixo.

Então, estávamos assim: apaixonados pela gatinha do estacionamento, Ava Gardner só com a casa toda - inclusive nossa cama - para ela; mas sem a garagem, e os seis irmãos se esbaldando. Saíam, iam à luta, e voltavam. Quando queriam.

Bobeamos. Demos mole. Achamos que o primeiro cio ainda levaria um tempo. A esterilização marcada para o fim do mês. Aí, é claro, deu-se a melódia: duas, Rajadinha e Máuca, apareceram grávidas. Ao mesmo tempo. Aqui faz-se necessária uma explicação: Rajadinha se chamava Rajadinha porque era rajadinha. Para os íntimos, depois, ficou sendo Raja. E Máuca se chamava Máuca porque tínhamos pruridos de educação e civilidade e não queríamos que os amigos soubessem que seu nome de batismo era Mau Caráter, e, outra vez, com carradas de razão: batia nos outros, criava casos, era sempre a primeira a comer e a receber carinho. Ai da cabeça que tentasse chegar antes para o afago de nossos dedos, entrava tudo na pancada: a cabeça, o resto do gato, às vezes, nosso dedos.

De modo que chegamos à conclusão de que não podíamos, não tínhamos condição de levar a gatinha do estacionamento para casa. Ainda mais quando, após outra noite de amor e despedidas com ela, entramos em casa e vimos Máuca em trabalho de parto. Ficamos assistindo, ajudando, e nos maravilhando. Só que Máuca não precisava de ajuda. Ela era mãe, sempre tinha sido mãe, nascera para ser mãe. Eficientíssima, carinhosa, sabia de tudo, parecia que aquela era sua décima ninhada. Tanto que três noites depois, Raja deitou, se ajeitou da maneira que lhe pareceu mais confortável, e começou a parir. Deitada de costas, a barriga para cima, ao lado da Máuca. E vamos ser francos: Raja não tinha o menor instinto, a menor bossa para a maternidade. Parecia que nem era com ela. Ficou deitada, de vez em quando erguendo a cabeça e lançando um olhar que demonstrava algum interesse nos procedimentos, e pondo os filhotes no mundo, recebendo placidamente nossos carinhos e exortações, enquanto Máuca fazia todo o trabalho: puxava os filhotes mais recalcitrantes, cuidava da placenta, cortava o cordão com os dentes, lambia os sobrinhos - tudo isso enquanto dava de mamar aos filhos - e lançava olhares severos de reprovação e auto-suficiência quando Maria Lúcia, aflita, ousava tentar ajudar. Foi então que os filhos recém-nascidos da desnaturada Raja foram mamar. Na Máuca. Máuca virou penca de filhos. De tal forma que os dela, já três dias mais velhos e mais vividos que os primos acabados de sair da barriga, cederam seus lugares e foram mamar na tia. (São essas coisas que a gente conta e ninguém acredita. E, outra vez, com carradas de razão; mas tudo isso aconteceu do jeito que estou contando).

De modo que estávamos assim: Ava Gardner, injuriada, siderada na porta da garagem e imaginando vinganças tão terríveis que quando simplesmente olhávamos para ela, baixava as orelhas, punha o rabo entre as pernas e se afastava, esmagada pela culpa; quatro gatos entrando e saindo, no auge da saúde, da juventude e da esbórnia; e duas jovens mamães se revezando na criação e nas mamadas. Lá, naquela garagem, ninguém sabia quem era quem. Os estudioso de imprinting passariam uma semana lá e abandonariam para sempre seus conceitos e suas teorias.

E havia sempre a gatinha do estacionamento. Que nos esperava todas as noites deitada ao lado do nosso carro. E a impossibilidade de levá-la cada vez mais evidente, e a vontade de levá-la cada vez mais incontrolável. Até que uma noite, após as despedidas, ela entrou no nosso carro. Juntamos todas as forças, respiramos fundo, ficamos muito adultos e pragmáticos e, num esforço supremo, pegamos a gatinha - ela não tinha nome - no colo, demos muitos beijos, pusemos no chão do estacionamento, e dissemos até amanhã. Adultos. Pragmáticos. Destroçados. Não conseguíamos nos olhar nos olhos. Culpa, vergonha, coração partido. De tal maneira que, no dia seguinte, resolvemos: a gente dá um jeito, leva ela para o nosso banheiro, para o nosso quarto, arranja um lugar para prender a Ava; reza para ela se acostumar com os outros gatos, faz qualquer coisa, mas traz a gatinha para casa hoje. Hoje, depois do espetáculo, damos mais esse mergulho, fazemos mais essa loucura, mas trazemos a bichinha para casa.

O espetáculo naquela noite pareceu mais longo do que os outros. Nunca foi tão difícil e ansioso discar M Para Matar . No camarim, as roupas trocadas com pressa ofegante, uma sensação de euforia. A corrida para o carro. E ela não estava. Não estava. Não estava no carro, não estava no estacionamento, não estava no mundo. Nunca mais soubemos dela. Perguntamos, procuramos. Nunca mais.

E já que comecei citando Mark Twain, termino citando um trecho do "Soneto da Quarta-feira de Cinzas", do Vinicíus. O final:

"...porque te vi nascer de mim, sozinha,
como a noturna flor desabrochada
a uma fala de amor, talvez perjura,

por não te possuir, tendo-te minha,
por só quereres tudo e eu dar-te nada,
hei de lembrar-te sempre com ternura."


Este site está em constante atualização. Volte sempre e confira as novidades!
©2008 Cláudio Cavalcanti - Todos os direitos reservados.
Dúvidas, críticas, sugestões, contate o webmaster.