Cláudio Cavalcanti
 
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"Crescer amando os animais é aprender a compaixão e o respeito por todas as formas de vida"

 

Só Duas Vezes

Maria Lucia Frota Cavalcanti

(Crônica publicadas no livro "Amando os gatos com todas as letras", Editora Top. Co. Multimeios, 2003)

 

Como sempre em nossas vidas, nossa família quadrúpede era mais numerosa que a bípede. Três cachorros e uma gata eram nossos proprietários. Todos eles apanhados na rua. Todos eles maravilhosamente diferenciados, com suas personalidades distintas, seus defeitos distintos e sua qualidades distintas. Minha filha, Lu, estava com 4 meses e há 15 dias uma febre resistia bravamente aos cuidados de dois pediatras.

Diante da tenacidade da febre, um deles achou indispensável providenciar um hemograma complicado que exigia a vinda de um terceiro pediatra, esse, especialista em coleta de sangue em bebês.

Na hora marcada, já sabedores que cachorros não admitem violências contra suas propriedades, tratamos de prender os três caninos.

Não nos preocupamos com Agatha, que era gata e toda preta, com olhos verdes e enormes bigodes brancos.

Agatha não gostava de gente, excetuando-se nós.

Cultuava com coerência uma esquizoidia invejável e soberana.

Qualquer ligeiro barulho antecipador de uma presença estranha, e desaparecia majestosa e digna para dentro da gaveta escolhida no armário que aprendeu a abrir.

Chegou o pediatra. Cachorros presos. Nós horrorizadas mas conformadas com a inevitabilidade da tal coleta.

Na veia.

É difícil pegar veia de bebês. Mas, o pediatra era especialista exatamente nesta prática.

Minha filha foi colocada sobre a bancada do seu quartinho. Lugar ideal, distante de sustos. Nele aconteciam, todo tempo, coisas agradáveis. Eram trocadas as fraldas, mamadeiras eram tomadas, atividades pós-banho, talco, colônia, carinhos.

Fiquei eu de um lado e minha mãe e minha querida babá do outro. Todas nós corajosamente caladas, mudas.

A porta do quarto estava aberta e dava para um corredor muito grande.

O médico, de costas para esse corredor, grave, começava os procedimentos. Instrumentos primeiro. Seringa, agulha, frascos, garrote. Éter. O primeiro toque e o primeiro chorinho.

Éter é frio. Tudo bem. Passou. Vai ser rápido. É só uma picadinha. Pronto. E não foi encontrada a veia. Um choro mais barulhento e mais longo. Nova tentativa. Sangue, e veia nada.

Uma segunda picada, agora berros e berros e nada. Nada de veia. Terceira picada. Mais berros. Alguma coisa, lá no fim do corredor, se mexeu, mas, no tumulto, não consegui distinguir o que era, e minha filha aos berros cada vez mais convulsivos, o médico querendo continuar, querendo que a contivéssemos com mais força, tudo muito rápido, nós todas querendo matar o médico. E quando eu ia abrir a boca para mandar parar tudo, veio o salto. Impôs-se o salto.

Bíblico, avassalador, preciso.

Agatha, mais preta ainda, o triplo do seu tamanho, pupilas faiscantes, pulava, garras expostas, fauces escancaradas, na direção exata da carótida do doutor.

Ninguém viu como chegou nem como armou o bote.

Quando atacou, o objetivo já estaria consumado se, no puro reflexo, eu não conseguisse desviar o vôo. Porque era um vôo, e de rapina.

Consegui evitar.

Pensei que tivesse conseguido evitar.

O médico paralisado, seringa na mão, estava lívido.

Segurando Agatha com força, pelas quatro patas - como quem vive com gatos sabe como fazer nessas horas - a coloquei para fora do quarto e fechei a porta.

Meu coração batia em compasso com o dela e disse um obrigada baixinho. 

Nesse momento, já não havia a mais ínfima possibilidade de permitirmos que qualquer tipo de qualquer coisa fosse coletada.

Queríamos o médico fora, já que não tinha sido sangrado pela nossa heroína.

Mas, noblesse oblige - talvez outro dia doutor, o bebê precisa descansar um pouco, talvez amanhã - e nós três fomos empurrando o senhor para perto da porta, aberta a porta, pelo corredor; findo o corredor, para o hall, ele relutante - o elevador chegou, doutor - e foi aí que percebeu-se que tinha esquecido a maleta.

Despencamos as três, tropeçando uma nas outras, correndo para pegar a maleta.

E então deu-se o inevitável.

Agatha, implacável e insatisfeita na sua vingança, reapareceu.

Maior ainda. Dessa vez em cima do piano e a 10 cm da cara do médico.

E nós no meio do corredor.

Nada entre ela e ele.

Nós três aos berros.

Agatha! Agatha!Agatha!

Agatha do piano para o chão. o médico do meio do hall para o canto da parede.

E foi uma mordida só.

Já era outra a intenção de Agatha. Profilática agora.

Não era mais preciso eliminar o inimigo. Bastava a certeza de que desapareceria para sempre.

Foi uma mordida como eu nunca pensei ver um gato dar. Uma mordida cool, calma e determinada. No tornozelo. Dada com dignidade e moderação.

Quando alcançamos o local do conflito, ela já se retirava. Com o rabo alto.

O médico, vencendo sua absoluta perplexidade, se atirou para dentro do elevador sem emitir um único som.

Também em absoluto silêncio, voltamos as quatro pra o quarto.

Agatha comandava a tropa. Ia na frente e nós três atrás.

Pulou para a bancada. Fez um reconhecimento completo do terreno.

Com método cartesiano verificou cada milímetro do corpinho de minha filha.

Ainda eriçada, mas já emitindo ruídos delicados, gentis, lambeu o que achou que devia ser lambido. Acomodou-se bem juntinho do nosso neném e olhou para nós, já calma e em paz.

Tinha plena consciência de ter cumprido o seu dever.

Quinze anos se passaram em nossas vidas e na de Agatha.

O episódio em nada mudou sua visão de mundo. Continuou a se retirar para a sua gaveta sempre que indesejáveis rondassem a área.

E então meu pai morreu. Morreu em casa, como queria, com seus desejos respeitados. Como pediu, em casa foi velado.

Durante a noite a casa estava cheia. Família e amigos. Gente. Muita gente.

Por coincidência, a cama fowler em que passou seus últimos dias foi instalada no quarto que tinha sido de minha filha bebê.

A cama estava também de frente para o corredor como, há quinze anos, tinha estado a bancadinha.

Também eu, também por coincidência, estava na mesma posição, de frente para o grande corredor.

E vi então surgir a Agatha.

Devagar. Ritmada. Passou por todos e saltou outra vez.

Salto esse também absolutamente preciso, mas, dessa vez, dado com delicadeza. Saltou para o peito do meu pai morto.

E lá ficou até o fim, até o último minuto, até quando de lá foi retirada pelo Cláudio, a quem, pela primeira vez, esse gesto foi permitido, e a quem Agatha, a partir daquele momento, adotou integralmente, até o último dia dos 23 anos que durou sua linda vida.


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