Como
sempre em nossas vidas, nossa família quadrúpede era mais
numerosa que a bípede. Três cachorros e uma gata eram nossos
proprietários. Todos eles apanhados na rua. Todos eles
maravilhosamente diferenciados, com suas personalidades
distintas, seus defeitos distintos e sua qualidades distintas.
Minha filha, Lu, estava com 4 meses e há 15 dias uma febre
resistia bravamente aos cuidados de dois
pediatras.
Diante da
tenacidade da febre, um deles achou indispensável providenciar
um hemograma complicado que exigia a vinda de um terceiro
pediatra, esse, especialista em coleta de sangue em
bebês.
Na hora
marcada, já sabedores que cachorros não admitem violências
contra suas propriedades, tratamos de prender os três
caninos.
Não nos
preocupamos com Agatha, que era gata e toda preta, com olhos
verdes e enormes bigodes brancos.
Agatha
não gostava de gente, excetuando-se nós.
Cultuava
com coerência uma esquizoidia invejável e
soberana.
Qualquer
ligeiro barulho antecipador de uma presença estranha, e
desaparecia majestosa e digna para dentro da gaveta escolhida
no armário que aprendeu a abrir.
Chegou o
pediatra. Cachorros presos. Nós horrorizadas mas conformadas
com a inevitabilidade da tal coleta.
Na
veia.
É difícil
pegar veia de bebês. Mas, o pediatra era especialista
exatamente nesta prática.
Minha
filha foi colocada sobre a bancada do seu quartinho. Lugar
ideal, distante de sustos. Nele aconteciam, todo tempo, coisas
agradáveis. Eram trocadas as fraldas, mamadeiras eram tomadas,
atividades pós-banho, talco, colônia,
carinhos.
Fiquei eu
de um lado e minha mãe e minha querida babá do outro. Todas nós
corajosamente caladas, mudas.
A porta
do quarto estava aberta e dava para um corredor muito
grande.
O médico,
de costas para esse corredor, grave, começava os procedimentos.
Instrumentos primeiro. Seringa, agulha, frascos, garrote. Éter.
O primeiro toque e o primeiro chorinho.
Éter é
frio. Tudo bem. Passou. Vai ser rápido. É só uma picadinha.
Pronto. E não foi encontrada a veia. Um choro mais barulhento e
mais longo. Nova tentativa. Sangue, e veia
nada.
Uma
segunda picada, agora berros e berros e nada. Nada de veia.
Terceira picada. Mais berros. Alguma coisa, lá no fim do
corredor, se mexeu, mas, no tumulto, não consegui distinguir o
que era, e minha filha aos berros cada vez mais convulsivos, o
médico querendo continuar, querendo que a contivéssemos com
mais força, tudo muito rápido, nós todas querendo matar o
médico. E quando eu ia abrir a boca para mandar parar tudo,
veio o salto. Impôs-se o salto.
Bíblico,
avassalador, preciso.
Agatha,
mais preta ainda, o triplo do seu tamanho, pupilas faiscantes,
pulava, garras expostas, fauces escancaradas, na direção exata
da carótida do doutor.
Ninguém
viu como chegou nem como armou o bote.
Quando
atacou, o objetivo já estaria consumado se, no puro reflexo, eu
não conseguisse desviar o vôo. Porque era um vôo, e de
rapina.
Consegui
evitar.
Pensei
que tivesse conseguido evitar.
O médico
paralisado, seringa na mão, estava lívido.
Segurando
Agatha com força, pelas quatro patas - como quem vive com gatos
sabe como fazer nessas horas - a coloquei para fora do quarto e
fechei a porta.
Meu
coração batia em compasso com o dela e disse um obrigada
baixinho.
Nesse
momento, já não havia a mais ínfima possibilidade de
permitirmos que qualquer tipo de qualquer coisa fosse
coletada.
Queríamos
o médico fora, já que não tinha sido sangrado pela nossa
heroína.
Mas,
noblesse oblige - talvez outro dia doutor, o bebê
precisa descansar um pouco, talvez amanhã - e nós três fomos
empurrando o senhor para perto da porta, aberta a porta, pelo
corredor; findo o corredor, para o hall, ele relutante - o
elevador chegou, doutor - e foi aí que percebeu-se que tinha
esquecido a maleta.
Despencamos as
três, tropeçando uma nas outras, correndo para pegar a
maleta.
E então
deu-se o inevitável.
Agatha,
implacável e insatisfeita na sua vingança,
reapareceu.
Maior
ainda. Dessa vez em cima do piano e a 10 cm da cara do
médico.
E nós no
meio do corredor.
Nada
entre ela e ele.
Nós três
aos berros.
Agatha!
Agatha!Agatha!
Agatha do
piano para o chão. o médico do meio do hall para o canto da
parede.
E foi uma
mordida só.
Já era
outra a intenção de Agatha. Profilática agora.
Não era
mais preciso eliminar o inimigo. Bastava a certeza de que
desapareceria para sempre.
Foi uma
mordida como eu nunca pensei ver um gato dar. Uma mordida
cool, calma e determinada. No tornozelo. Dada com
dignidade e moderação.
Quando
alcançamos o local do conflito, ela já se retirava. Com o rabo
alto.
O médico,
vencendo sua absoluta perplexidade, se atirou para dentro do
elevador sem emitir um único som.
Também em
absoluto silêncio, voltamos as quatro pra o
quarto.
Agatha
comandava a tropa. Ia na frente e nós três
atrás.
Pulou
para a bancada. Fez um reconhecimento completo do
terreno.
Com
método cartesiano verificou cada milímetro do corpinho de minha
filha.
Ainda
eriçada, mas já emitindo ruídos delicados, gentis, lambeu o que
achou que devia ser lambido. Acomodou-se bem juntinho do nosso
neném e olhou para nós, já calma e em paz.
Tinha
plena consciência de ter cumprido o seu dever.
Quinze
anos se passaram em nossas vidas e na de
Agatha.
O
episódio em nada mudou sua visão de mundo. Continuou a se
retirar para a sua gaveta sempre que indesejáveis rondassem a
área.
E então
meu pai morreu. Morreu em casa, como queria, com seus desejos
respeitados. Como pediu, em casa foi velado.
Durante a
noite a casa estava cheia. Família e amigos. Gente. Muita
gente.
Por
coincidência, a cama fowler em que passou seus últimos dias foi
instalada no quarto que tinha sido de minha filha
bebê.
A cama
estava também de frente para o corredor como, há quinze anos,
tinha estado a bancadinha.
Também
eu, também por coincidência, estava na mesma posição, de frente
para o grande corredor.
E vi
então surgir a Agatha.
Devagar.
Ritmada. Passou por todos e saltou outra vez.
Salto
esse também absolutamente preciso, mas, dessa vez, dado com
delicadeza. Saltou para o peito do meu pai
morto.
E lá
ficou até o fim, até o último minuto, até quando de lá foi
retirada pelo Cláudio, a quem, pela primeira vez, esse gesto
foi permitido, e a quem Agatha, a partir daquele momento,
adotou integralmente, até o último dia dos 23 anos que durou
sua linda vida.